quarta-feira, 9 de novembro de 2011

um gato na frente de casa

Eu não sei se te contei,
Mas hoje quando chegava em casa,
Vi um gato na frente do portão.

(Não chegava a ser noite,
Mas o dia já ia se entregando,
E a luz amarela dos postes
Se oferecia ao basalto da calçada)

Me aproximei bem devagar,
Querendo fazer carinho
Querendo coçar-lhe a cabeça
Querendo admirar seu pelo.

Mas o gato se assustou;
Correu de medo,
Sem sequer me perguntar
Quais eram minhas intenções.

Lembrei-me de ti.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

colher de chá

Ela é um serzinho engraçado.
Com suas roupas coloridas e seu andar aligeirado, caminha ágil por aí, como que farejando pelo ar o cheiro de novos gostos ásperos, o barulho de cores estridentes.

Caminha pela vida e pelas diferentes cidades como uma criança em dia de feira na rua, deliciando-se com os aromas das frutas frescas. A cabeça em pé, o queixo apontando para o alto, move-se com rapidez. Olha em volta, pergunta, prova, aprende. E sempre com sua colher a postos, pronta para degustar os sabores do mundo.

Sua colher lustrosa, de prata, é pequena, para que não se sacie apenas na primeira prova. Roubou-a de uma mesa de chá. Embora não conte para quase ninguém, ela me contou essa história.

Antes de tudo o que aconteceu, ela era outra pessoa. Estudava na escola, dormia em casa, fofocava com colegas, comprava meias quentes a cada inverno, meias finas a cada verão. Tomava chá com suas amigas, dançava balé, escovava o cabelo todos os dias. ... Eu sei, não parece que estou realmente falando dela. Mas é tudo conforme ela me contou.

Em um desses encontros para tomar chá, estava com suas colegas de balé, em um bairro requintado da cidade. A sala do chá era um ambiente arejado, com uma enorme janela que dava para a rua em frente. Sentaram-se em volta de duas mesas, uma para o chá e outra para o bolo. Eram cerca de dez amigas, dispostas em duas rodinhas de conversas e gritinhos. Em um canto da sala, um velho armário pesado, de madeira - um dos orgulhos da dona da casa, mãe de uma das meninas.

Enquanto as amigas discutiam os envolvimentos afetuosos de outras colegas, ou a possibilidade da professora ter feito lipoaspiração, a menina observava a janela. Distraía-se com um garoto que passava do outro lado da rua. Era pobre, podia-se notar: usava calças largas, dobradas na barra, para que não arrastassem no chão; uma camiseta preta, mas notadamente clareado graças às diversas lavagens a que fora submetida; um pé de seus tênis estava rasgado do lado, abrindo um pouco a cada passo que ele dava. Não era exatamente bonito, mas a figura como um todo lhe agradava, talvez pela indisciplinada e descompromissada simplicidade que demonstrava e, de certa forma, oferecia.
O garoto ia caminhando pela calçada, e ela ia observando o garoto. Desejou que ele a olhasse também. E que, ao olhá-la, visse mais que uma menina rica, sofisticada, de roupas caras e hábitos finos... Mas será que ela era mais que isso? Esse pensamento cruzou sua mente com rapidez, sendo imediatamente repelido. Ora, claro, ela sabia que era muito mais que uma garota mimada. Era uma menina com crítica e autocrítica! Afinal era isso que ensinavam em sua escola...

O garoto sentou-se na calçada, exatamente na frente da casa. Ela não podia acreditar! O garoto sentara-se exatamente na frente da janela que ela espiava. Será que a tinha visto? Será que estava agora esperando por ela? A garota não sabia se ia para fora, se esperava um sinal mais claro, se contava para as amigas... Olhou para elas, e viu que ainda se detinham nos assuntos de sempre ("Eu comprei aquele tonalizante loiro-28, mas ainda não usei; nunca usei o cabelo tão claro, estou com medo de uma mudança dessas!"). Decidiu tentar participar da conversa com as amigas, mas perguntava-se ainda o que estava fazendo o garoto, o que esperava, o que queria, quem era. Sentou-se de costas para a janela, para tentar frear sua curiosidade.

Distraiu-se por alguns minutos, bebericando seu chá egípcio (cuja caixa era exibida com orgulho pela anfitriã, cujos pais haviam passado as férias nas pirâmides), conversando leviandades com suas amigas, até que...
- MEU DEUS, OLHEM AQUILO! - uma das meninas levantara-se e apontava para a janela.
A garota levantou e olhou. Seu garoto estava em pé, e outro garoto estava ali agora. Aquele que ela observara sorria tola mas francamente para o outro, ao qual estava abraçado, em pé. Davam-se beijos carinhosos a cada pouco, trocando algumas palavras de afeto. Sentaram-se os dois, na calçada, de costas para a janela, e encostaram-se um no outro, conversando tranquilamente de mãos dadas.
O segundo menino a chegar à cena trouxera uma sacola plástica. Dentro dela, uma embalagem de confeitaria. Abriram-na juntos e, dentro dela, uma vistosa fatia de torta, decorada com frutas vermelhas. Riram por um momento, percebendo que nenhum deles trouxera talheres. Começaram a comer com as mãos, então, entre novos risos e beijos.

As garotas dentro da sala entraram em êxtase. Gritavam, riam, xingavam. O vidro impedia que os garotos ouvissem o que elas diziam -mas a menina ouvia, e tudo aquilo feria ela. Tentou tomar um gole de chá, mas não sentiu gosto algum além de água suja; levantou-se e caminhou até a mesa do bolo, pegou um pedaço, mas ele também não tinha gosto algum - parecia feito de areia.
Nervosa, sentou-se novamente e colocou a cabeça entre as mãos. O mundo rodava, e tudo que ela podia ouvir eram as vozes esganiçadas de suas amigas, ridicularizando os garotos janela afora. Logo, não ouvia mais. Não sentia mais o cheiro dos perfumes importados usados pelas meninas ao redor. Não sentia a seda de sua roupa tocando sua pele. Tirou o rosto do meio das mãos, e o mundo havia se tornado preto-e-branco.
Horrorizada, gritou alto, estridente. Começou a chorar. Olhou ao seu redor. Nenhuma das meninas notava para ela. Desesperada, virou-se para a janela: os dois garotos olhavam por cima dos ombros, as bocas sujas de chocolate, procurando de onde viera o grito que ouviram.
Os olhos da menina brilharam por um momento. Pôs-se de pé, foi até a janela, parou em frente a ela. O primeiro garoto, contorcendo-se, abanou para ela. Ela respondeu o abano, e começou a sorrir. Um sorriso entre algumas lágrimas, como um arco-íris em uma tarde de chuva.
Ela então virou-se de costas para a janela; as amigas olhavam com dureza para ela, sem entender o que ela fazia. Sem dar explicações, foi até o armário, abriu a primeira gaveta, tirou três colheres de prata, de chá, e saiu porta afora. Deixou seu casaco, suas sapatilhas, sua bolsa.
As amigas ficaram em silêncio, estupefatas pelo inesperado da cena. Viram a menina sair e viram a menina surgir na janela, indo em direção aos dois garotos.
Ela caminhou até os dois, parou na frente deles, curvou-se, mantendo os joelhos retos, como aprendera no balé. Com um sorriso, mostrou as três colheres em sua mão. Os meninos sorriram e aceitaram cada um uma colher. Ela, com sua própria, tirou um pedaço da torta que eles comiam, enfiou-no na boca e saiu caminhando levemente pela rua. E quando começou a chover, ela dançou, se bem me lembro.

pedaços de retratos

E mesmo depois de todo esse tempo, ainda encontro pedaços de retratos que não fui quem quebrou.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

sobre dar voltas

Existe uma certa beleza na rotina; um prazer além do conforto - antes que me censurem.
Há algo de encantador em ver algo acontecer, ou em ser algo acontecendo!, e deixar-se acontecer diversas vezes.

Sou admitidamente contra o adormecimento, contra o automatismo, contra a reprodução cega.
O que quero é ver a mesma cena e enxergar algo novo e especial a cada olhar. Quero um dia, ao amanhecer, olhar-te nos olhos, no outro investigar-te os lábios, no outro conhecer teus ombros.

A criação está dos olhos para dentro, não está no corpo. Não está no quadro, na foto ou no poema.

...
Quanto a nós, nos deixo acontecer, como velas distintas de um mesmo barco, mesmo que o vento insista soprar-nos em círculos - al rededor de la mas bella isla.