terça-feira, 26 de outubro de 2010

nossas palavras

- Tá, eu preciso falar isso - ele disse, muito sério e formal, parando de caminhar.
Ela também parou, fechou os olhos e virou-se para ele:
- Manda ver, então.
Era um dia quente, e eles haviam decidido caminhar até um parque perto da casa dele. Disputaram as escassas sombras das árvores com uma multidão de pais, mães, avós, crianças e cachorros. Haviam desistido da batalha e caminhavam lentamente, de mãos dadas, pelos caminhos calçados do parque. Agora estavam parados, um de frente para o outro - ainda com as mãos dadas. De olhos cerrados, ela sentia a persistente luz do sol invadindo suas pálpebras, tingindo seu escuro de vermelho:
- Vai parecer puxação de saco, sei lá - ele iniciou, agora mais tímido.
Ela sorriu. Nem tentou fingir não ter expectativas sobre o que ele iria dizer:
- Tá, tá, fala logo!
- Ok. É só que... sabe, acho que depois de te conhecer, não vou nunca mais me contentar com qualquer pessoa que seja algo menos que genial. Acho que preciso da tua magia, do teu jeito, ou sei lá que palavra existe pra isso. Preciso das tuas frases complicadas e compridas. Tô viciado até nas tuas palavras! Não consigo pensar em não aprender alguma coisa contigo todo dia... Eu te acho brilhante, genial, forte, única, e tu sabe como eu valorizo isso...
Ela abrira o olho esquerdo e espiava ele. O garoto gesticulava muito, mesmo achando que ela não o via. Olhava para longe, como que pedindo ao horizonte que lhe dissesse que palavras usar. Falou enfim:
- Sabe, eu acho que eu te am... - ela colocou rapidamente o dedo sobre a boca dele, fazendo-o calar.
- Vamos manter a originalidade, ok? - ela disse, abafando um risinho.
Ele passou o braço pelo pescoço dela, deu-lhe um beijo estalado na bochecha e sugeriu um picolé...

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

atrasada ou muito atrasada

- Não, não, eu tenho que ir.
- Tu tinha que ter ido meia hora atrás. Atrasada ou muito atrasada dá na mesma...
- Não, mas vai ficar muito na cara; todo mundo vai perceber lá em casa. Sério, olha o meu cabelo! Que que eu faço com o meu cabelo?!
- Faz nada, deixa ele assim. Eu gosto dele assim.
- Tu tá entendendo que se eu chegar em casa a essa hora, com o cabelo assim, meus pais vão ter que fazer um esforço muito pequeno pra adivinhar onde eu andei, e o que eu andei fazendo, né?
- Teus pais nem vão perceber. Ela deve estar no quarto, passando hidratante nas pernas; e ele comendo pipoca e vendo Tele-Domingo. Vem aqui!
- Não, não. Deixa eu arrumar meu cabelo aqui... ai... Poxa, não sei o que eu faço pra ele parecer normal!
- Teu cabelo tá lindo, tá normal, natural. Volta pra cá!
- Ahh... Tá. Tá. Mas daqui a dez minutos eu vou embora!
(meia hora depois, ele está beijando o pescoço, os braços e a barriga dela...)

domingo, 24 de outubro de 2010

paralelos

A música de fundo ora aparece, ora some - ela não é o mais importante nessa cena.
A luz, tímida, forma sombras alongadas a partir dos dois corpos: é como se eles posassem em movimento, assistindo suas figuras na parede - mas isso não é o mais importante nessa cena.
Os sons, as poucas palavras, a respiração dos dois: uma sinfonia intrincada e melódica, regida pelos movimentos precisos embora espasmáticos dos dois corpos - isso ainda não é o mais importante nessa cena.
A complicada dança (se é que se pode chamá-la assim) sincronizada dos dois embala minutos, horas, eternidades consecutivas - pois é isso que parece durar aquela noite...

Nada que se possa comentar, delimitar ou explicar interessa tanto quanto o inexplicável.
O inexplicável que cruza a mente de cada um deles, que os leva a dizer e a pensar o que dizem e pensam, embora nem sempre digam o que pensam ou pensem no que dizem...
O inexplicável que os leva sempre aos mesmos lugares juntos.
O inexplicável que os obriga a relembrar cada momento.
O absurdo que os leva a pensar em todos os instantes e a eternizá-los em palavras que jamais poderão explicar o real significado desses instantes.

cara mau

Perdoar é dar um passo para trás, para dar dois pra frente. É recuar no meu orgulho e na minha "honra" (se é que eu tenho alguma). É me libertar da minha angústia, dos meus julgamentos de mim, de ti e da situação. É sair da concha.
Perdoar é um ato acima da compreensão humana; não faz sentido no nosso plano astral. É aceitar e acolher o erro alheio que me prejudica e me incomoda, sem benefícios diretos e muito poucos indiretos.
Perdoar sinceramente é dificílimo, é quase abrir mão de uma parte de si. Porque a raiva, o ressentimento e o ódio nos constituem também, não se engane. Eu contenho ódio, e abnegar dele é perder uma parte de mim mesmo.

Isso tudo em mente, eu olho pra frente, dou um passo para trás e me preparo para os meus dois próximos: eu te perdoo.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Love me while you can

- Na real o George foi pra Índia, despirocou completamente e voltou de sandalinha de couro, querendo colocar cítara até em Parabéns pra Você - disse ela, de uma só vez, como que se tirando um enorme peso das costas. - Pronto, falei.
Ele a fitou por alguns instantes, com um misto de espanto e indignação. Suspirou para se acalmar e disse então:
- Se pra ti uma viagem de cunho espiritual, cujas consequências refletem até hoje no cenário musical é um "despirocar", então sim, ele despirocou afu.

A discussão seguia um molde predeterminado, repetido sempre que eles ouviam Revolver, dos Beatles, juntos. Ela mantivera aquelas palavras dentro da boca desde Love you to, a quarta música do CD, a qual ela classificava abertamente como "hipponga". E ele ainda tinha que cantar junto a letra da música! Parecia até provocação.
Agora já estavam em She said she said, a sétima. Ambos silenciaram. Era um acordo velado: She said she said era boa demais pra se brigar em cima. Ele batucava na própria perna; ela tocava uma guitarra imaginária. Aquela trégua ofereceria uma imagem engraçada a quem olhasse aquele casal, sentado no sofá da sala, com tantas regras implícitas em seus jogos. Tão logo começou Good day sunshine, ele fez uma careta e atacou:
- Bom mesmo é o Paul dizendo como a vida é bela. Bom dia, luz do sol, mimimi! Ridículo.
Ela acusou o golpe. Balbuciou algumas palavras de protesto, mas teve de concordar: Good day sunshine não podia ser séria. Ele fez uma cara satisfeita e pôs-se a batucar novamente. Acuada, ela fechou a cara e passou a cantar, com os dentes cerrados, "And your bird can sing, but you don't get me, you don't get meee!". Ele percebeu a belicosidade da situação, pegou o controle remoto e pulou algumas músicas, até chegar em Got to get you into my life.
Levantou do sofá com um pulo e parou na frente dela, cantando "Ooh, then I suddenly see you; Ooh, did I tell you I need you; Every single day of my life..." e rebolando ridiculamente. Ela abriu um largo sorriso e, antes que começasse Tomorrow never knows, já estavam rolando pela cama.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

pós-começo (ou pré-fim?)

- Essa porta sempre tranca, tem que dar uma puxadinha pra cima... - ela disse, fazendo força na maçaneta para cima.
- Peraí, deixa eu tentar - ele a entregou as sacolas que segurava, tomou a chave e, gentilmente, abriu a porta.
- Olha só! Como eu vivi tanto tempo sem ti? - ela riu suavemente, com um toque de malícia. - Ah, entra aí.
Ele entrou no apartamento. Parecia uma criança dentro de uma loja de brinquedos grande demais para sua atenção.
- Bah, Hitchcock na sala! Genial! - ele apontava para o cartaz de "Os Pássaros". Ela sorriu orgulhosa. Deu-lhe um beijinho e foi correndo guardar as compras.
- Tu comprou a vodka mesmo! Achei que fosse brincadeira! - ela gritou da cozinha. Ele sentara no sofá da sala e agora lia distraidamente uma revista qualquer que estava a seu alcance.
Logo, ela veio com o DVD que eles haviam alugado e um saco de pipoca.
- Preparado? - ela perguntou alguns instantes depois, já com o controle remoto na mão. Ele assentiu, e eles passaram duas horas aninhados um no outro (exceto por duas pausas para ela ir ao banheiro), assistindo a um dos clássicos aos quais ela sempre se referia.

Após o filme, recolheram minuciosamente as migalhas de pipoca do sofá e se dirigiram ao quarto dela. Ela pulou na cama e, pelo seu olhar, convidava-o a fazer o mesmo. Ele correu e se atirou do lado dela:
- E aí, gostou? - ela perguntou, abraçando o pescoço do rapaz.
- Gostei, gostei - respondeu, distraidamente, já beijando o pescoço dela.
Enroscaram-se, e iam beijando-se e abraçando-se, até que ele, num ato distraído, olhou para a estante que havia na cabeceira da cama. Ali, um ursinho de pelúcia o encarava com desprezo. Era branco, mas um pouco desbotado e encardido. Tinha um coração enorme e bobo na barriga e segurava sobre a cabeça um porta-retrato - vazio. O rapaz sentiu-se mal por um instante. Parou de beijá-la. Ela percebeu:
- Que que foi?
Ele apontou o ursinho com o queixo:
- Tirou a foto daí hoje, né?
Ela silenciou por um instante. Baixou o rosto e os olhos e suspirou. Levantando as sobrancelhas, disse então:
- Pelo menos eu tirei, né? - e sorriu minimamente.
Ele fez cara de quem entendeu a ideia. Respirou duas ou três vezes. Olhou para ela. Para o fundo dos olhos ela. Abriu um meio-sorriso e, num golpe só, deu um tapa no urso que o fez decolar até a lixeira, do outro lado do quarto. Piscou para a garota. Inicialmente assustada, ela deu uma gargalhada e se agarrou de novo no pescoço dele.

Já no outro dia, de manhã:
- Ele era horrível mesmo, não?
Ela concordou com a cabeça, mas não com a mente.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

o complicado, enrolado, e prolixo fim

A campainha toca. Ele levanta do sofá, fingindo não ter pressa para abrir a porta. Espia longamente pelo olho-mágico, como se não soubesse quem está lá fora. "Ela ficou bem de cachos..." pensa consigo.
Abre a porta lentamente. Um rosto sorridente aparece:
- Oi! - ela exclama, os olhos brlhando, um pouco marejado; certamente não só de alegria.
- Ehm... oi! - após uma pausa constrangida - Entra, entra!
Ela entra no apartamento, pé ante pé; a cabeça e os olhos espiando tudo. A garota fareja sua própria presença, procura sinais de sua existência na casa alheia:
- Ah, tu deixou o Negão!
O Negão era uma estatueta de uns 30 centímetros de altura, de um aborígene com uma lança de taquara. Ela sempre soube que era horrível, mas sempre sentira a presença dele (e em lugar de destaque) na sala como um sinal de certa fidelidade.
- Ah, é... pois é, ele combina com a... ãã... TV...? - seu rosto enrubesce pela estupidez que acaba de dizer.
Percebendo o desespero dele, a garota o socorre, mudando de assunto:
- Olha aí, eu trouxe pizza! - ela diz, abrindo um sorriso.
Ele olha para a sacola (até então sequer havia reparado nela), mais para fugir daquele sorriso do que para contemplar a pizza congelada.
- Legal, vou esquentar o forno! - e sai correndo pra cozinha.
Voltando à sala, encontra-a descalça, bebericando uma taça de vinho, inclinada sobre a estante, passando o dedo distraidamente sobre os CDs, procurando algum que a agradasse.
- Olha! O CD do Cardigans que eu te dei! - ela exclama alegremente, já colocando o o disco no rádio. Aquele disco que ele não ouvia há meses, e não era por não gostar de Cardigans...

Por duas horas, jantam a pizza (que ele queima, como de hábito), ouvem músicas e conversam timidamente sobre suas vidas e sobre suas lembranças.
- Pinga! Pinga! - brinca ela, fingindo torcer a garrafa de vinho. Uma última gota cai no cálice, e ela a sorve agitadamente.
Ele sorri debilmente em aprovação, como fazia de hábito. Na verdade, para ele, a noite está sendo uma enorme decepção. Pensava que, ao final da noite, teriam feito as pazes e recomeçado sua vida juntos. Mas até agora, só conseguira conversar sobre assuntos levianos ("A Cacá tá namorando com o Júnior! Eu te disse que tinha coisa ali!") ou sobre lembranças dolorosas.
No entanto, seu quarto, fechado, está finamente preparado para agradá-la. Uma garrafa de champanhe, uma caixa de fotos de suas viagens juntos, um grande buquê de rosas; a cama, cuidadosamente arrumada e impregnada com o perfume favorito dela. E tudo que conseguira até então era saber do patético destino das amigas desinteressantes dela...
- Essa caixa aí é minha? - ela pergunta, indicando a caixa no canto da sala. Dentro dela, livros, CDs, roupas dela. Tudo bem dobrado e arrumado com carinho.
- É, coloquei tudo aí... quer dizer, exceto o Negão. E o porta-retrato. Mas se tu quiser eles...
- Não, não, não e não. Presente é presente! Ou tu quer os meus ursinhos de volta? - ela ri gostosamente, jogando o cabelo para trás.
Ele se esforça, mas só consegue sorrir amarelo.
- Bom, eu vou indo então - ela conclui, já se levantando.
Após uma breve e embaraçosa despedida, ela entra no elevador ("Bom te ver, hein!"). Ele fecha a porta. Encosta-se nela, deixando-se cair vagarosamente no chão, as mãos cobrindo os olhos. Permanece sentado no chão por alguns instantes. Abre então os olhos, levanta-se ligeiro e sai correndo para a janela do quarto, que dá para a rua. Abre a janela e a procura na rua. Lá está ela! Abrindo a porta do táxi!
- LÍVIA!! - ele grita. Ela levanta a cabeça, olha em volta, aguça a audição. Mas naqueles poucos instantes, algo mudou. Ele não grita novamente. Simplesmente observa ela entrar com seus recém-adquiridos cachos no táxi. Algo mudou. Ele sabe. Ele sabe que acabou.

simples começo

- Ali! - ela falou, apontando para um risco no céu.
Ele riu com satisfação; explicou-se:
- Eu nunca tinha visto uma!
- Rá, então eu sou tua primeira! - ela disse, esboçando um sorriso, mas logo se arrependendo. Ela sempre analisava as próprias piadas. Ele achava graça.
Um silêncio pleno e agradável pousou sobre os dois. Ele aproveitou para rolar seu corpo sobre a grama, deitando virado para ela.
Estudava cuidadosamente o rosto da garota. Gostava de tudo nela. De fato, gostava até das orelhas dela! Pensou em maneiras de dizer isso, mas sentiu-se "bobo. E piegas!". Aliás, sentiu-se piegas por ter pensado na palavra "piegas".
Ela agora olhava para ele também, o rosto virado para o seu lado; o corpo hesitante entre virar para o dele ou não.
Sem perceber, se aproximavam. Os olhos dela eram tudo que ele podia enxergar. Podia jurar que sentia o coração dela bater, junto com o seu. Sentia o cheiro da respiração dela - o aroma mais íntimo que há.
Fechou os olhos e soube: começou ali.

maria antonieta

Gato de botas,
Caia de pé.
D'altura que for,
Caia de pé.

Não segure minha mão,
Não me peça perdão;
Se um culpado existe,
Sabemos quem é
- caia de pé.

Não chore em vão;
Engula secamente
As lágrimas que virão
- e elas virão.
Não serão elas a resolver
Minha falta de fé.
Gato de botas,
Não se deixe morrer:
Por favor, caia de pé.

bem-te-vi

Todas as formas de destino,
Todas as formas de intuição;
Todas as formas que, imagino,
Levam o ser a sua ação;
Todas existem,
Coexistem;
Convergem num ponto:
Me levam pra longe de ti.

Todas as formas de recomeço,
Todas as formas de mudança;
Com todas as formas me pareço
- o nosso re-final me cansa.
Nossos infindáveis ensaios de fim
Terão fim
Enfim.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

quase-fim

- Onde tu dormiu ontem? - ela perguntou, despretensiosamente, enfiando um pedaço enorme de frango na boca.
- Como assim? Eu dormi em casa... - respondeu ele, virando os olhos, tomado de um súbito e inexplicável interesse pela TV: dois homens com roupas coloridas e trejeitos afeminados discutiam a decoração de uma casa.
Percebendo que o disfarce não era convincente, levantou-se, jogou o resto de sua comida no lixo e pôs-se a lavar seu prato na cozinha.
- Eu liguei pra tua casa. Tu não atendeu... - ela sugeriu novamente, com o cuidado de não parecer se importar muito.
- Fui dormir cedo - respondeu simplesmente, retornando, secando as mãos em um pano e trazendo um garrafa. Sentou-se novamente ao lado dela.
Uma aura cinzenta pesou sobre os dois. Ela sabia. Ele sabia que ela sabia. Ela sabia que ele sabia que ela sabia...
(mas eles simplesmente tomaram mais uma garrafa de vinho e viveram felizes por mais uma noite)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

200

Entre abraços não há espaços - para dúvida ou para pensamentos incertos.
Entre corpos apertados não há segredos guardados que não sejam descobertos.
Não importa o quão estranho seja, parece certo - e quem se arrisca a dizer que não é?

sábado, 2 de outubro de 2010

eu vou rolar os dados todos os dias
e vou sempre seguir a minha sorte
a minha ventura
ou o que você chama de deus ou estatística