quinta-feira, 26 de maio de 2011

lejos

De vez em quando, sentia-se sozinho. Olhava ao redor, procurando um rosto amigo, uma palavra em sua língua, um gesto amigável. Às vezes , era a voz sobressalente de um turista de sua terra que o lembrava de seu próprio idioma.
De vez em quando, lembrava da falta que os detalhes faziam: um abraço especial, um sorriso, um "olá", na sua língua e com o seu sotaque. Pessoas, conhecidas ou não, mas que tivessem em comum a irmandade de terem nascido no mesmo lugar. Estranha fraternidade a dos conterrâneos!

Sentia-se sozinho. Sentia-se, às vezes, único, especial - porém, invasor. A Alice em um país de poucas maravilhas.
Talvez pior ainda fosse o peso da escolha que fazia diariamente. Escolhia estar ali, longe de casa, longe dela, longe de todos. Todos os dias, os olhares enviesados, as palavras secas, a falta de compaixão o impeliam a voltar. E ele não voltava.

Queria recriar a si próprio; começar algo novo, que pudesse chamar de "eu" com alguma naturalidade. Faria uma vida nova, com memórias novas e planos novos.
Estranhava seu estrangeirismo. Mas entranhava sua condição.

terça-feira, 17 de maio de 2011

complexo de complexidade

chegou em casa de tardezinha.
jogou sua mochila em um canto do quarto.
correu para a escrivaninha.
sentou-se na cadeira e tirou um lápis de uma gaveta meio emperrada.
puxou algumas folhas usadas e começou a escrever compulsivamente no verso delas.
escrevia com vigor - como se tirasse das próprias folhas, aos riscos, o significado que procurava.

- pela primeira vez se sentia complexo.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

refém

Distraída, com seus fones enfiados fundo no ouvido. Caminha rápido, esquivando-se das pessoas na calçada. Amaldiçoa aquela gente toda e amaldiçoa o fato de estarem ali.
Ela se sente a menina a correr agilmente contra a maré de gente. Gosta de sentir-se assim; diferente. Veste-se diferente. Ouve músicas diferentes. Lê autores que ninguém conhece. Tem relações que ninguém entende.

Ela vê um braço, ao alto, do outro lado da rua, abanando. Procura o dono do braço no meio da múltidão. "Ah, não", ela pensa para si própria.
Ele atravessa correndo, sem nem olhar para os lados, sorrindo tolamente. Para na frente dela, espera pacientemente que ela tire os fones - e ela demora mais que o necessário. Ela não consegue evitar visualizar um cachorrinho que encontrou o dono. Dá um sorrisinho nervoso. É abraçada com força - sem retribuir. Livra-se do abraço. Evita fitar aqueles olhos tolos e sinceros. Aqueles olhos que ela já viu brilhar com sua presença, assim como viu marejados por suas palavras. Prefere admirar, com superioridade, a cafonice da camisa-polo azul-bebê que ele veste. Fala qualquer coisa:
- Quanto tempo...!
- Pois é né... Olha, eu só queria te dar um oi mesmo. Meio que tô com pressa, desculpa.

Ela não entende. Ele está com pressa?! Na frente dela, pressa?!
- Tu tem aula agora, ou o quê?
- Não, não... Tenho um... Encontro. Encontro? Ainda se fala isso? - ele ri.
Ela dá mais um sorriso nervoso, sem responder à pergunta.
- Encontro? Tu... Um encontro?
- É, pois é, eu sei. Um dia a gente tem que largar do osso, né? - dá uma piscadela, ainda sem parar de rir.
- É, não, legal. Eu só... Só achei estranho, sei lá. Mas eu me acostumo! - ela esboça um sorriso nervoso, mas sente-se tola. O que está acontecendo? Está se sentindo idiota na frente DELE?!

Passam-se, na cabeça dela, diversos minutos; minutos em que ela pensa no que representou para ele; no que ele já lhe disse, entre declarações, manifestos e pedidos - e nas grosserias que ela respondeu. Mas na verdade, são poucos segundos até que ele diga:
- Então, vou indo lá. Já tô até meio atrasado na verdade - ele olha para o relógio, naquele gesto instintivo de quem "tem que ir".
- Atrasado? Tu sempre foi de chegar até antes da hora! Tu mudou tanto assim?
- Há quanto tempo a gente não se vê mesmo...? - ele ri, jogando a cabeça levemente para trás. Ela nunca reparara como gostava daquela risada.

Após um beijinho ou dois, uma troca de "a gente tem que se falar hein", ele vai embora. Ela fica parada. Olha para si própria. Uma lágrima escorre por sua bochecha. Odeia-se. Odeia o fato de ele estar livre.
Ele não é mais refém dela.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

So don't think that I'm pushing you away

When you're the one that I've kept closest.

domingo, 1 de maio de 2011

almuerzo

Você senta à mesa. Larga a mochila no chão, ao lado da cadeira. Levanta-se, serve-se de salada e de suco. Você sabe que eu escolheria o de laranja, não o de melancia.
É o meu restaurante favorito - é o nosso restaurante favorito - e você se lembra disso a todo instante. Senta-se em um canto próximo à janela, na cadeira encostada na parede. Escora a cabeça no vidro e espera dois segundos; eu não vou chegar.
Você começa a comer, percebendo enfim que deixou vazia a cadeira de frente para a janela. Você gostava de sentar de frente pra janela, mas eu pedia tantas vezes e com tanta vontade (chantagem?) que agora você a deixava vazia até mesmo na minha ausência.
Você se serve de pratos quentes. Distraído, pega arroz com ervilha: eu não estou lá pra comer suas ervilhas. Come apressado, incluindo as ervilhas. "Bolinhas verdes de borracha" você dizia; eu sempre achei fossem mais que isso, mas hoje admito que você tinha razão.
Uma garota não tira os olhos de você; eu teria ciúme, diria que tinha visto você olhar para ela. Ou pior, ficaria em silêncio, séria, até que me perguntasse o que havia acontecido comigo. Eu teria que ser reconquistada, e você até gostaria do esforço... Mas você não dá bola para ela.
Cruza os talheres o prato e vai até o balcão de sobremesas. Lá estão a sua e a minha sobremesa favorita. Você pega a minha.

Eu também sinto a sua falta.

navegar

Apaixonei-me por um navio. Um navio que não tinha destino: tinha escalas.
Irreversivelmente atraída pelo navio, esperava ele dar suas voltas pelo mundo. Recebia-o em meu porto, com um abraço e boas notícias; despedia-me com um lenço em mãos, os olhos marejados. Mas o navio era ligeiro; nem bem via minhas lágrimas, saía buzinando rumo a outra costa qualquer.
Éramos felizes, quando juntos, mas não fazíamos promessas quaisquer um ao outro: era algo momentâneo, inocente, espontâneo, puro (ele gostava de usar essa expressão).

E assim se foram anos. Eu esperava o meu navio. Ele atracava no meu porto, mas logo ia embora, deixando-me às lágrimas - sem sequer notar.

Quase acostumado a essa rotina de reencontros, despedidas e indiferença, um dia recebo uma carta. É do meu navio. Ele se foi há uma semana, e já me manda uma carta?! Rasgo o envelope e leio as confusas letras da carta: mas... mas... não faz sentido! O meu navio não quer mais me ver! Diz que sente minha falta em suas viagens; diz que vira de costas ao ir embora, não por indiferença, mas para esconder suas lágrimas! Diz que atracar em muitos portos é que é sua vida; que eu sou apenas um capítulo - apenas circunstancial. Que não devo procurá-lo, que não devo tentar dissuadi-lo. "Boa sorte" ele diz ao final!
Desnecessário dizer o quanto amaldiçoei aquele navio! Seu casco envelhecido, sua buzina estupidamente alta, seu motor barulhento, sua tripulação grosseira... (...) sentia falta de cada um de seus defeitos, mas fingia ver, em cada um deles, motivo para não sentir saudade.

Do navio não ouvi por muito tempo. Um rumor ou outro, de que havia se acidentado (consegui fingir indiferença), de que havia encontrado riquezas e atracado definitivamente em algum porto longínquo... as histórias eram as mais fantasiosas, e eu já imaginava que nenhuma delas era realmente verdade.

...
Um dia, caminhava eu pelo cais. Fingia que era um atalho para minha casa, mas eu bem sabia por que estava ali. Aquele cheiro desagradável do rio, aquela gente esquisita, aqueles atracadouros com sua madeira podre... eu conseguia tirar algo bom de tudo aquilo, só de lembrar do meu navio. Nossas longas conversas, nossas risadas; músicas, carinhos, livros, olhares.
Vi, ao fundo, o casco do meu navio, virado de costas para mim. Seria ele? Ou será que a distância teria me confundido? Caminhei (primeiro lentamente; depois, a passos largos) até o píer onde ele estava. Ouvi sua buzina cantando alta e desajeitada; era ele!
Aproximei-me lentamente por trás, cutuquei-lhe as costas. Ele virou para mim. Primeiro, um olhar sério e repreensivo; não aguentando, abriu um sorriso amigável. Pegou em minha mão.
Meu navio começou "descul...", mas "não!" eu disse. "Um começo?" ele arriscou. "Um começo", consenti.

E é por isso que estou indo embora.