domingo, 21 de agosto de 2011

escrever como fim

Às vezes você senta na minha frente e se põe a escrever freneticamente, com entusiasmo. Tece frases e capítulos com a habilidade de uma velha senhora a bordar. E o faz por prazer, toda noite, como que cumprindo, comigo, suas obrigações conjugais.

Mas hoje sentou tão calado... Puxou a cadeira com desânimo, olhou-me com os olhos vazios; sentou-se e começou a esmurrar minhas teclas, descarregando em minhas letras suas angústias.
Não distingue maiúsculas de minúsculas; não se importa com parágrafos. Usa vírgulas, travessões e exclamações como se nunca tivesse aprendido a diferença entre eles.
Sangra-me por minha tinta no teu papel. Sangra-te junto, pois são tuas próprias palavras.
Juntos, agonizamos noite afora, madrugada adentro; linhas preenchidas com frases débeis, idéias incompletas e pesadelos esquecidos.
O som das minhas teclas preenche o quarto, como uma fumaça espessa e esbranquiçada, dotada de ritmo único e espasmático. Não existe nada que não seja o ruído da escrita, e ele é gritado alto, e ele é sentido com força, e ele é o fim por si próprio. Você se esvai na minha frente. Suas idéias definham e morrem no exato momento que tocam o papel. É desespero, mas é alívio.

Não é por querer que você escreve. Escreve porque precisa. Porque não aguenta mais que escrevam em sua pele, que rabisquem suas linhas, suas falas. Você pensa que cansou de pensar entre aspas. As metáforas do lado de lá já não servem mais.
Você escreve caminhos novos e desesperados, iluminados por luz nenhuma, sem esperança de ser lido ou compreendido. Sem técnica. Sem poesia. Sem espírito e sem unidade. Só tinta minha em teu papel.
Noite afora, madrugada adentro.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

primeiro dia

Vi-a pela pela primeira vez em uma manhã quente de março. Era meu primeiro dia de aula na quinta série, no colégio em que estudei a vida inteira.
Ela usava meias altas, coloridas, que acompanhavam sua perna até acima do joelho, fazendo-a parecer um pouco tola - mas certamente menos baixinha. Devia ter seis anos.
Estava do outro lado da rua, olhando para o colégio como um bezerro que encara o matadouro. Em uma mão, uma lancheira cor-de-rosa; na outra, um vazio: não segurava mão alguma. Tive-lhe pena. Sabia como era a sensação. Claro, fazia já alguns anos que eu entrara no colégio, mas lembrava-me ainda do meu primeiro dia. O nervosismo, os olhares tensos, o suor frio nas mãos. A briga em casa para não ir. Meu pai... Sacudi-me para espantar as más memórias de meus primeiros dias.
Um colega meu aproximou-se de mim e começamos a conversar (sobre a professora de Geografia, que, dizia-se, seduzia e atacava os alunos que permaneciam na sala após o horário da aula; isso causava uma debandada geral logo que batia o final do período de Geografia). Em alguns minutos, o sinal tocou alto, sinalizando o começo de mais um ano. As crianças e os jovens começaram a entrar no prédio: os mais novos, empolgados, correndo; os mais velhos, arrastando-se, como que para a sala de tortura.
Olhei para o outro lado da rua e vi-a lá, ainda parada - agora petrificada, eu diria. Crianças passavam ligeiras por ela, esbarrando em seus ombros, atravessando a rua em direção à escola; ela permanecia parada. Despedi-me de meu colega, disse "já vou lá!" e atravessei a rua em direção à menina. Parei em sua frente. Ela, minúscula, batia antes do meu ombro. Sorri para ela. Ela me olhou assustada; parecia pedir clemência. Insisti no sorriso. Encostei-me ao seu lado, de frente para a escola, como ela. Tomei sua mão na minha; olhei novamente para ela, agora sem sorriso, mas com o olhar mais convidativo e a maior gentileza que pude inspirar na hora. A garotinha me olhou, ainda séria, porém mais decidida. Atravessamos juntos a rua. Ela estacou na frente dos portões da escola. Com uma sacudidela da cabeça (e de seus longos cabelos), olhou-me com pesar e perguntou:
- E se eu não gostar? E se meus colegas não forem legais? E se eu não entender o que a professora diz? E se eu achar que não é isso que eu quero fazer? E se eu quiser voltar pra casa?!
Prometi, em silêncio, que sempre a levaria pela mão, aonde quer que fosse.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Lagom

O tanto de comida que me sacie a fome.
O tanto de água que me tire a sede.
Companhia o bastante apenas para não me sentir solitário.
Roupa, apenas o bastante para que não sinta frio.
Uma casa tão grande quanto o necessário. Não maior. Talvez menor.

O tanto de trabalho que me mantenha meramente ocupado.
Dormir apenas o necessário para me deixar de pé por mais um dia.
Tantos livros quanto possa ler. Nenhum a menos.
Tantos livros quanto possa entender. Nenhum a mais.
O tanto de música que me encha os ouvidos.

Tanto tempo quanto me seja útil.
Tanto tempo quanto eu seja útil.

Tanto de mim quanto for possível.
Tanto de você que não me deixe mais ter saudade.

Lagom

Aviões à uma da manhã

Um ponto claro riscou o negro céu, cortou a noite.
Olhei para cima. Acompanhei seu movimento com a cabeça. Os olhos, já embaçados pelo tardar da hora, seguiram a trajetória da luz. Caía, mas não bem caía - persistia, apontando ao longe, buscando aterrisar em um aeroporto que não o meu.

Pois não passam aviões à uma da manhã.
Estrela cadente sem cadência. Passou por mim.