segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O Impensável e o Ivo

À meia-noite, chegava eu ao local combinado.
Duas quadras ao sul, a contar a partir da escola onde tínhamos nos conhecido.
A noite, de uma escuridão densa, não fazia caso da luz dos postes da cidade. Eram meros borrões, ofuscando a visão mais que iluminando. Não me lembro bem se fazia frio ou muito frio, mas eu estava de gorro e de luvas. Calças grossas, uma bota para a chuva, uma mochila pesada com algumas camisetas, um par de calças e muitas páginas em branco. Uma caneta, que eu esperava durasse a viagem toda. Uma câmera fotográfica, mas nenhum filme.

Enxergava enfim o ônibus, estacionado do lado direito da rua, como um cachorro malcriado amarrado a um poste. As luzes dentro dele me lembravam dos navios pesqueiros dos filmes de criança; eram de um amarelo enjoativo, mas que despertava uma nostalgia-do-não-vivido. Sinto isso com frequência. Ou, diabo, o tempo todo. É como viver imerso em memórias das quais vou lembrando à medida que (re)vivo cada uma delas. Déjà vu. Mas isso é outra história.

Caio esperava na porta do ônibus, olhando impaciente para o relógio de pulso. Batia o pé direito no ritmo dos segundos, em melodia com o tempo. Era-lhe tão precioso o tempo; sempre havia sido. Viu-me aproximando, mirou-me de soslaio, sem levantar a cabeça da direção das horas:
- Meia-noite e um minuto, M. Esse ônibus era pra ter partido ontem.
Apurei o passo, tirei a mochila do ombro e joguei-a no fundo do bagageiro, que já estava aberto. Passei por ele e me encaminhava em trote para as escadas do coletivo:
- Mas és o primeiro a chegar - disse meu amigo.

Desfiz meu caminho e parei junto a Caio, ao lado do bagageiro do ônibus. Encostei as costas e a sola de um dos pés no ônibus e tentei relaxar.
Tirei um cigarro do bolso. Caio me olhou, novamente sem mexer a cabeça. Balançou-a em reprovação. Ignorei-os.
Com alguma presunçosa habilidade, bloqueei o vento com as mãos e acendi o cigarro. Traguei uma vez, duas, três, e já fumava o filtro. Com um peteleco, fiz a guimba rodopiar e cair a uns três metros de nós dois:
- Que horas são? - perguntei.
Caio se manteve firme olhando para o relógio; a boca entreabriu-se: ele contava os segundos para dar a resposta mais acurada:
- ... Meia noite e três minutos! - disse de uma só vez, evitando que o ponteiro dos segundos chegasse ao primeiro tracinho depois do "12" antes de dada a informação.
Ri com meu nariz - aquela risada que todo o mundo detesta, mas nunca deixa de fazer.

Esperei alguns instantes, então perguntei:
- Quem mais vai?
- Acho que ninguém. Ivo, Sávio e Marco não podem sair da cidade por ordem judicial - sim, a freira denunciou. O Turco está acamado. Tosse, parece. O Pequeno disse que ia começar uma dieta de proteínas e que não era uma boa ideia ir junto. A Carmen tu conheces bem e sabe o porquê. A Paula disse que contigo ela não iria. E eu só estou aqui pra controlar o tempo, porque tenho que voltar pra avisar minha mãe a hora que começar a novela - respondeu monótono.
- Então talvez eu deva me apressar. Não quero me deixar esperando - falei sem sorriso.
- Boa viagem, senhor M. Sinto muito pela vez que roubei teu bonequinho favorito. Eu sei que ele era especial para ti, mas eu tinha nove anos e não percebi o mal que estava fazendo.
Caio secou uma lágrima, levantou a cabeça e olhou-me nos olhos. As lágrimas passaram a cair em profusão, e ele já não podia contê-las. Tirou do bolso do casaco meu boneco, dado como perdido há anos. Entregou-o em minhas mãos. Deu-me as costas em um giro ligeiro e desapareceu entre os postes e suas luzes difusas.

Subi os cinco degraus da escada do ônibus.
Dirigi-me para as poltronas dos passageiros. Sentei-me em uma logo na primeira fileira, onde fiquei analisando meu brinquedo favorito de infância. Era um super-herói, com uma longa capa e pequenos desenhos de raios ao longo do uniforme.
Curado de meus mais profundos traumas, saudei o motorista com um animado "Boa noite ou já é bom dia?". Ele estava sentado em seu lugar, iniciando o motor do ônibus e respondeu qualquer coisa ininteligível, quase um grunhido. Aparentando irritação, levantou a mão direita e apontou para uma placa logo acima do painel do veículo.
"Fale ao motorista somente o impensável"

Olhei para o bonequinho em minhas mãos e falei:
- Que liberdade é essa que é concedida?

E de repente o motorista era Caio, eu, minha mãe e todo o mundo. Porque todo mundo precisa, ou mais ainda, merece ouvir o impensável. Menos o Ivo, porque o Ivo é o Ivo.

nem nome tem isso mais

Hoje me despedi de você, pela última vez. Sem beijo no rosto, sem abraço; sequer um aperto de mãos. Um adeus sincero, de quem quer mesmo se despedir.
Virei de costas e segui meu caminho.
Andei dez passos e olhei para trás: você não estava vindo atrás de mim.

Que bom.

confessar

Me diz que sonhos estranhos tu tens à noite
Que eu te conto de quem eu mais tenho saudade.