A campainha toca. Ele levanta do sofá, fingindo não ter pressa para abrir a porta. Espia longamente pelo olho-mágico, como se não soubesse quem está lá fora. "Ela ficou bem de cachos..." pensa consigo.
Abre a porta lentamente. Um rosto sorridente aparece:
- Oi! - ela exclama, os olhos brlhando, um pouco marejado; certamente não só de alegria.
- Ehm... oi! - após uma pausa constrangida - Entra, entra!
Ela entra no apartamento, pé ante pé; a cabeça e os olhos espiando tudo. A garota fareja sua própria presença, procura sinais de sua existência na casa alheia:
- Ah, tu deixou o Negão!
O Negão era uma estatueta de uns 30 centímetros de altura, de um aborígene com uma lança de taquara. Ela sempre soube que era horrível, mas sempre sentira a presença dele (e em lugar de destaque) na sala como um sinal de certa fidelidade.
- Ah, é... pois é, ele combina com a... ãã... TV...? - seu rosto enrubesce pela estupidez que acaba de dizer.
Percebendo o desespero dele, a garota o socorre, mudando de assunto:
- Olha aí, eu trouxe pizza! - ela diz, abrindo um sorriso.
Ele olha para a sacola (até então sequer havia reparado nela), mais para fugir daquele sorriso do que para contemplar a pizza congelada.
- Legal, vou esquentar o forno! - e sai correndo pra cozinha.
Voltando à sala, encontra-a descalça, bebericando uma taça de vinho, inclinada sobre a estante, passando o dedo distraidamente sobre os CDs, procurando algum que a agradasse.
- Olha! O CD do Cardigans que eu te dei! - ela exclama alegremente, já colocando o o disco no rádio. Aquele disco que ele não ouvia há meses, e não era por não gostar de Cardigans...
Por duas horas, jantam a pizza (que ele queima, como de hábito), ouvem músicas e conversam timidamente sobre suas vidas e sobre suas lembranças.
- Pinga! Pinga! - brinca ela, fingindo torcer a garrafa de vinho. Uma última gota cai no cálice, e ela a sorve agitadamente.
Ele sorri debilmente em aprovação, como fazia de hábito. Na verdade, para ele, a noite está sendo uma enorme decepção. Pensava que, ao final da noite, teriam feito as pazes e recomeçado sua vida juntos. Mas até agora, só conseguira conversar sobre assuntos levianos ("A Cacá tá namorando com o Júnior! Eu te disse que tinha coisa ali!") ou sobre lembranças dolorosas.
No entanto, seu quarto, fechado, está finamente preparado para agradá-la. Uma garrafa de champanhe, uma caixa de fotos de suas viagens juntos, um grande buquê de rosas; a cama, cuidadosamente arrumada e impregnada com o perfume favorito dela. E tudo que conseguira até então era saber do patético destino das amigas desinteressantes dela...
- Essa caixa aí é minha? - ela pergunta, indicando a caixa no canto da sala. Dentro dela, livros, CDs, roupas dela. Tudo bem dobrado e arrumado com carinho.
- É, coloquei tudo aí... quer dizer, exceto o Negão. E o porta-retrato. Mas se tu quiser eles...
- Não, não, não e não. Presente é presente! Ou tu quer os meus ursinhos de volta? - ela ri gostosamente, jogando o cabelo para trás.
Ele se esforça, mas só consegue sorrir amarelo.
- Bom, eu vou indo então - ela conclui, já se levantando.
Após uma breve e embaraçosa despedida, ela entra no elevador ("Bom te ver, hein!"). Ele fecha a porta. Encosta-se nela, deixando-se cair vagarosamente no chão, as mãos cobrindo os olhos. Permanece sentado no chão por alguns instantes. Abre então os olhos, levanta-se ligeiro e sai correndo para a janela do quarto, que dá para a rua. Abre a janela e a procura na rua. Lá está ela! Abrindo a porta do táxi!
- LÍVIA!! - ele grita. Ela levanta a cabeça, olha em volta, aguça a audição. Mas naqueles poucos instantes, algo mudou. Ele não grita novamente. Simplesmente observa ela entrar com seus recém-adquiridos cachos no táxi. Algo mudou. Ele sabe. Ele sabe que acabou.
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COMO TU É SUTIL
ResponderExcluircomo uma martelada no dedão
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