sábado, 6 de junho de 2009

autobiografia de outrem

Era nuvem.
Nuvem carregada, escura e densa. Era nuvem insistente de chuva que não chovia.
Nuvem da espera que não termina. Nuvem etérea, que não se deixava cair. Era pesada e negativa. Nuvem negra que, impondo sua presença, se tornava invisível. Era sim triste e frustrada, parada e gélida. Era incompleta e abandonada - e assim se via e se martirizava.
Deixava-se dominar por toda sorte de maus pensamentos, más esperanças e sonhos-dos-outros - que nunca foram seus, mas que estavam lá nas suas aspirações. De sonhos-dos-outros já bastavam aqueles dos quais não escaparia. Queria sonhos seus.
Sabia o que queria, essa nuvem. Era uma nuvem deveras pensativa. Absorta nos seus desejos secretos, encolhia-se em seu mundinho e, assim, só se tornava maior, mais escura e mais densa.
E era assim a vida da nuvenzinha. Crescia por fora, mas não por dentro.
Angustiava-se com o tempo, mas não tentava moldá-lo. Angustiava-se com as pessoas. Angustiava-se com sua angústia e consigo. Não se suportava, a pobre nuvenzinha. Achava-se ridícula, e se pode questionar até que ponto estava errada em suas idéias, pois o mundo - o seu mundo - lhe dizia "não sonha, nuvenzinha, que os sonhos são feitos de idéias, e idéias são feitas de açúcar, que molha e vira nada". E como insistia em depositar nos outros a sua inocente confiança! Como fora traída. Como fora ridicularizada. Como fora pisoteada, xingada e humilhada - sempre pelas costas. Odiava-se pela sua inocência; por ouvir os outros. Queria apegar-se a seus instintos e a sua sabedoria, que crescia junto com a desilusão.

E ninguém entendia a pobre nuvem. Ela pairava sobre os outros, observando e aprendendo. Baforando impacientemente, ela se surpreendia com as pessoas e suas ridículas máscaras. Surpreendia-se com a quantidade de pessoas em uma só pessoa. Irritava-se com a falsidade, a prepotência e o egoísmo - os quais lhe atribuíam, talvez tentando confundir-lhe. Jovem e cheia de vazios, a nuvem assumia pouco relutantemente os papéis mundanos que lhe davam.

Mas a nuvem sabia o que queria. Ou talvez soubesse o que não queria. A nuvem não queria ser gente. A nuvem não queria ser bicho. A nuvem não queria ser história. Nem historiador, nem contador. Não queria virar nada. Não queria ter nada. A nuvem queria fazer aquilo para que havia nascido. Ela queria completar sua função no mundo no qual fora colocada. A nuvem, meu paciente amigo, queria fazer o que as nuvens foram feitas para fazer! E ela o fez.

Hoje comecei a chover.

4 comentários:

  1. desnecessário dizer que me lembrou simon & garfunkel (kathy's song), bem como qualquer comentário. por mais cinzablue que tenha ficado o que tu escreveu, não esperava que tu fosse se retratar como nuvem. hey, ficou realmente Robe. eu pensei que teria muito o que dizer, ainda mais depois de falar contigo, mas reli o texto umas três ou quatro vezes com cara de bobinha e, em cada vez, encontrei um novo detalhe mais mágico. i really like(d) it. e eu gosto de como eu te encontrei muito claramente em vários trechos. ok, falando de detalhes mais técnicos, reforço que ficou realmente amazing teu jogo de terceira/primeira pessoa. e as palavras do gênero "etérea". well well, adoro te ler. por favor, keep writting! beijo.

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  2. Magnífico o que eu acabei de ler, cada vez me surpreendo mais contigo! Continue escrevendo, serei tua fã sempre. Beijo.

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  3. acho que essa nuvemzinha leva o mundo muito a sério (:

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