segunda-feira, 27 de setembro de 2010

da epiderme da alma

Uma sala de estar em um apartamento pequeno e empilhado de quinquilharias e móveis antigos.
Ao lado da janela, uma mesinha. Um binóculo e comprimidos controlados - a alucinação e a cura. Livros por toda parte, todos lidos, relidos e bem rotos. Pó por toda parte. O vidro da janela não se vê limpo há anos.
A televisão desistiu de ser levada ao conserto. O rádio só toca as mesmas músicas.
Não há sinal de reforma, mudança, limpeza - sequer há sinal da luz do sol. Não há sinal de vida que não seja um homem (um fantasma, pode-se dizer) sentado em uma poltrona rasgada, a roer as unhas e a fustigar-se pensando.
A poltrona, a parede e, pensando bem, tudo ali é cinza. Tudo ali exala não-vida (porque esse é o contrário de vida). O fantasma está remoendo seus problemas, revirando os olhos ao pensar em uma solução simplista demais, em outra complicada demais.

Ele parece inquieto. Levanta-se de súbito; pega dois comprimidos, engole-os em seco e toma o binóculo em mãos. Como de hábito, aponta o binóculo para o lado de fora, não sem antes limpar um pouco o vidro da janela com a manga de seu moletom. Seu rosto deformado esboça um leve sorriso ao olhar o mundo externo.
Rosna baixinho algum som ininteligível, mas certamente de aprovação. Parece habituado àquilo. É como se fosse uma tara, uma perversão.
De repente, deixa seu braço cair, o binóculo pendendo em sua mão. Seu rosto não tem mais o sorriso débil de segundos atrás. O homem fica sério, e seu rosto toma uma assustadora forma: não é exatamente ira ou ódio, é algo muito mais profundo que isso - algo muito mais antigo e amargo. Tomado de um impulso, joga o instrumento no chão com toda a força. Caminha cambaleante até sua poltrona e deixa-se cair ali.
"Maldita chave! Hei de morrer aqui dentro, sozinho, sem a chave da porta da minha própria casa!"

Sim; o homem vê-se preso em sua casa, sem sua chave. Acometido pelo descuido, um dia deixou-a nalgum lugar e nunca mais soube onde foi. Talvez tenha esquecido, talvez não queria lembrar - mas ele não pode abrir sua porta.

O fantasma, de porte tão elegante e potente, de repente chora desesperadamente. Esmurra violentamente suas pernas. Amaldiçoa-se por seu esquecimento. Amaldiçoa sua vida, seu apartamento. Amaldiçoa o mundo lá de fora, por não abrir suas portas para ele...

Secando os olhos em sua manga, ele se põe em pé e liga o rádio. O som de suas melodias preferidas é provavelmente o único porto seguro dentro da fortaleza de pedra na qual ele existe. Agora o homem chora baixinho, quase um ganido canino.
De repente, silêncio.
O choro para.
O fantasma não respira.
Ele olha para a porta. Olha para a janela. Porta. Janela. Olha para si.
Levanta-se.
Faz menção de pegar alguns comprimidos, mas simplesmente derruba-os no chão.
"Não. Não. Não, não, não. Mas..."

O fantasma caminha a passos largos e ágeis até a porta da frente.
Olha bem para sua porta. A porta que abriu e fechou a vida inteira, antes com seus pais, então com seus amores - depois da morte daqueles e da perda destes, nunca mais. Mirou com atenção a maçaneta de sua porta. Ela era de um dourado envelhecido, mas persistente. Provavelmente o único objeto naquela casa que ainda ousava exibir alguma cor, alguma vida, por mais tímida que fosse.
Tomado de um curiosidade irresistível, ele admirava a maçaneta de sua própria casa, como quem olha para uma peculiar obra em uma exposição moderna.
O rosto do fantasma é tomado de um ar de incredulidade, mirando aquele pedacinho de metal que lhe manteve trancafiado por tanto tempo.
O homem deixa sua cabeça cair até a porta, fazendo um som seco de batida.
Quando ergue de novo seu rosto, exibe um sorriso infantil.

Coloca sua pesada mão sobre a maçaneta. Sente o metal frio sobre sua pele. Sua espinha se arrepia de excitação. Gira a maçaneta rapidamente, produzindo o som característico que há tantos anos não ouvia.

A porta nunca esteve trancada.
A porta nunca está trancada.

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