terça-feira, 2 de novembro de 2010

A jAnelA

A janela da saída de incêndio bate na minha cabeça e ecoa em um estrondo metálico - eu sempre tive a cabeça meio oca. Ela grita "que merda, vai logo!". Eu fecho a janela e começo a descer um lance de escadas, enquanto tento colocar minha calça do lado certo. Escuto a voz dele entrando, e é como todas as outras vezes... Ele repete "cadê o desgraçado?! Cadê ele?! Eu mato o desgraçado!", com pequenas alterações na estrutura das frases. Eu adoro ouvir isso.
Não vou mais descer. Subo de volta e me coloco um andar acima do apartamento deles, deitado no chão da escada, com a cabeça pendendo, ouvindo cada detalhe da briga que se desenrola logo abaixo ("me ligaram pro escritório, me contaram TUDO! Acabou, acabou!"). Abro um sorriso. Acho que finalmente ele vai mandar ela embora. Ou vai ele mesmo embora. Aí talvez ela fique comigo, de forma mais... regular. Talvez eu até possa apresentar ela pros meu pais, quem sabe?
De repente, ele mete a cabeça pela janela de incêndio e olha para cima e para baixo. Por sorte, tenho tempo de esconder minha cabeçorra e impedir o desastre.
O cara, satisfeito de olhar pela janela, retorna à ladainha ("quem é ele?! Onde que ele tá?"). Eu me pergunto o que diabos estou fazendo ali, sem calça, tremendo de frio, ouvindo aquela discussão. Um sopro de vento gelado apressa minhas conclusões e me põe de pé.
Preparo-me para descer, calculando se aquela escada de incêndio era mais velha que a minha vó, ou que a vó da minha vó.
Um voz, tão gélida quanto o vento daquela noite, me tira dos meus devaneios. "Tu é o novo pega dela, é?" pergunta a moça do apartamento logo acima do casal - o qual persiste na briga. É a venusiana mais linda que já vi. Tem cabelos negros, mas vivos, que lhe escondem um pouco do rosto - mas só o bastante para despertar a curiosidade. O rosto pálido, algumas marcas na pele, um certo ar de mistério, um toque de indefinível e irresistível doença cobre aquele rosto, aqueles olhos... Olhos que miravam o lugar logo abaixo de onde deveria estar meu cinto. Enrubesço, ao que me vejo sem resposta, sem calça e sem qualquer motivo para estar ali. "É, pode-se dizer que sim...". Maldita resposta estúpida. "Ela está melhorando, então. Quer entrar?" ela pisca charmosamente um daqueles enormes olhos.
Entro na casa da moça, fazendo uma demorada e inexplicável reverência ao pular sua janela de incêndio e pisar, com minhas meias sociais cinzas, em seu chão quadriculado. Um quadrado preto, um quadrado branco - como os que habitavam meus bobos sonhos da "minha casa".

"Tu quer uma cerveja?", ela pergunta com a naturalidade de quem recolhe caras da janela de incêndio seguidamente. "Acho que eu prefiro uma água". Ela vai até a geladeira e pega uma lata de cerveja. E é nesse momento que eu me apaixono.

O silêncio pesa absurdamente. É compreensível, dadas as circunstâncias, mas pesa como uma bigorna. Com a delicadeza de uma martelada no dedo, ela quebra o silêncio "olha, meu marido chega às sete; tu não quer conhecer o quarto?".

Pontualmente às sete horas, a porta da frente bate e eu, em um déjà vu assombroso, pulo janela afora, com a calça, a camisa e o cinto nas mãos. Fico agachado, observando o casal por alguns instantes. "Meu amor! E aí, como foi o teu dia?". Droga. Ele é um bom marido. Odeio bons maridos. Por que ele não pode chegar em casa pisando forte e xingando a mulher pelo congestionamento? Seria tão mais fácil pra mim.

Mais um déjà vu: escuto um assobio que vem de um andar acima. Viro a cabeça para cima: lá está a venusiana mais linda na qual já pousei os olhos. Os cabelos loiros ondulados tremulam com o vento, convidando-me para dentro de seu apartamento. Corro escada acima, fazendo um estardalhaço. Dos dois andares abaixo, brotam duas cabeças masculinas que me fitam desconfiadas. Ao verem a loira da cobertura, em cuja casa já vou entrando, retornam suas confusas cabeças para dentro de seus lares...

(criado em 18/01/2010
reciclado em 02/11/2010)

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