sexta-feira, 26 de novembro de 2010

duzentos. dos entes. doentes.

Eu não sei o que fazer. Meus olhos estão quase totalmente fechados. Vejo imagens borradas passando por todos os lados, mas não consigo focar em nada. Balanço a cabeça, tentando lembrar como eu fazia para enxergar - longínquos cinco minutos atrás. Ao fundo, a voz dela enche meus ouvidos de um zumbido insuportável. Estou tonto.
Apoio-me no carro. Pelo menos isso me lembra que estou na garagem. Ajoelho-me, junto ao carro. Esse carro que eu odeio tanto, nessa ridícula cor azul-piscina. Achei que nunca ia deixar uma mulher escolher o carro que eu ia dirigir pro trabalho todo dia...

Meus olhos vão recuperando a capacidade de ver; meus ouvidos, a capacidade de ouvir; minha cabeça pára de girar, e eu consigo me pôr de pé de novo. Parada na minha frente, minha mulher, grávida. Aquela barriga enorme tinha sido nosso sonho por tanto tempo, mas agora ela era um estranho espaço entre nós dois: um buraco negro que sugava mais do que jamais seria capaz de devolver - o que, aliás, deveria acontecer nas próximas três semanas.
Sara me finta com os olhos molhados. Mas não há nada além de raiva por trás daquelas lágrimas. Ela me odeia. Porque eu descobri a verdade.
- Tu não tinha nada que ler meus e-mails - ela fala, entre os dentes.
- "Sara, meu amor. Não posso assumir o seu filho. Você sabe que eu tenho uma família pra cuidar e que o seu marido jamais aceitaria isso." Blablablá - releio o pedaço de papel meio amassado, meio molhado na minha mão - Sabe, tu deixou teu e-mail aberto. Não foi um grande trabalho de investigação abrir aquele com o assunto "RE: Urgente".
Tenho o cuidado de ser a pior pessoa possível com ela. Desgraçada, me enganou por oito meses com um filho que não era meu na sua barriga. Comendo a comida que eu compro. Andando no meu carro azul-piscina ridículo. Dormindo na minha cama. Com aquela barriga enorme que, de repente, não me desperta qualquer caridade ou bondade em mim.

Ficamos em silêncio por alguns instantes. Agora me sinto calmo o bastante para resolver isso da forma mais adulta que eu poderia. Acho que posso deixá-la na casa, ir morar com a minha família por uns meses, até ela dar um jeito na vida...
- Sabe, isso é tudo culpa tua - ela fala, sem mexer um músculo, me olhando com raiva. Dado o meu silêncio, ela continua - Tu nunca mais me deu flores; nunca mais me levou no cinema; nunca mais me beijou que nem antes.
- Antes do quê? - eu pergunto, como quem fala com uma criança de seis anos.
- Tu não me ama mais! E eu vejo o jeito que tu olha pra Belinha!
Belinha é minha sobrinha de 13 anos. Isso não pode ser sério.
- Tu é louca de falar isso?! - começo a me sentir tonto de novo. E brabo. Muito brabo.
- Tu é um cachorro. Tu fica babando em cima dessas guriazinhas, tu é um nojento! Tu praticamente me empurrou pro César! Tu não pode me culpar por isso - ela fala, apontando pra barriga dela, pro meu filho. Digo, filho da puta.
- CALA A BOCA - eu grito, dentes cerrados.
- Isso é culpa tua, é culpa tua! Tu é o pior marido dessa merda de mundo! E seria o pior pai do mundo! Graças a Deus tinha outro idiota pra tomar o teu lugar!
Olho para os lados. À minha esquerda, aquela merda de carro, à minha direita, penduradas, as ferramentas da casa. Uma pá, uma cortadeira, um machado e uma enxada.
- Sara. Cala a boca. Tu sabe que meus pais tão lá em cima, na cozinha. A gente resolve essa situação de merda outra hora.
- Pois eles que ouçam! Bando de hipócrita! Que ouçam que o filhinho deles é um filho da puta, que a nora deles é uma vadia e que essa merda toda tá prestes a aca...
Num movimento só, tomo o machado e acerto a cabeça da minha esposa, silenciando definitivamente aquele bueiro. Um tímido esguicho de sangue pinta a parede.
- Porra, que saco - digo, não sei bem por quê, em voz alta.
O machado cai com estrépido no chão. O sangue, que primeiro corre lentamente, começa a empoçar depressa. Meu carro agora tem uma mancha enorme de sangue na janela. Bem em cima do (prematuro) adesivo de "Luquinhas a bordo". Ela continua lá, deitada, com aquela cara boba, os olhos abertos, vidrados, aterrorizados.
Finto-me no espelhinho lateral do carro. Minha camisa continua limpa. Claro, a velha mancha de água sanitária permanece. Porra, será que nem pra lavar a roupa ela servia direito?

Subo as escadas de dois em dois degraus, para encontrar meus pais na cozinha, dizer que Sara saiu com o carro para visitar a irmã dela e que "aquele barulho... Que barulho? Ah, não foi nada". Minha mãe me oferece e então me serve uma xícara daquele belíssimo chá de romã...

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